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A fotografia é reflexão e questionamento - Entrevista completa com Brenda Alcântara

Antes de a gente entrar no tema da revista, poderia falar um pouco sobre como você se iniciou na fotografia? Foi autodidata? Fez algum curso? Considera importante fazer cursos de fotografia?


Então, sou fotógrafa, mas hoje em dia também sou videomaker. Trabalho como diretora de fotografia e documentarista. O vídeo veio como mais uma ferramenta de comunicação complementando a fotografia e ampliando minha trajetória profissional.

Meu encontro com a fotografia começou muito cedo. Quando era criança, tinha muito medo de esquecer as coisas. E aí, muito nova, com seis anos de idade, fui incentivada a registrar as coisas. “Ah, pinte um pouco sobre isso”, me diziam. Depois que fui ficando um pouco mais velha, ganhei um diário para escrever sobre as coisas, mas percebi que meu problema de ter medo de esquecer era algo muito mais voltado às sensações. Eu não queria escrever sobre como era meu dia, “Ah, meu dia foi assim, foi assado”. Queria que as pessoas entendessem o que eu sentia se esquecesse, como eu me sentia vivendo aquilo. Teve uma hora que percebi que não era por meio das palavras que conseguiria me comunicar. E foi aí que ganhei do meu pai minha primeira câmera, uma câmera analógica. Acho que no primeiro dia que ganhei a câmera terminei o rolo do filme, porque queria guardar tudo aquilo que os meus olhos estavam vendo e que me fazia sentir. Fotografei o céu, fotografei as árvores balançando, fotografei as pessoas sorrindo... Então meu primeiro encontro com a fotografia foi através da memória, foi através do processo de construção da memória. Eu estava já pegando os pedacinhos desse entrelaçado, reconstruindo as memórias e guardando tudo aquilo que queria para meu futuro. Isso tangenciou todo o meu processo de amadurecimento e de criação. O culto à memória. A memória sempre foi muito presente nos meus processos, tanto no fotografar quanto no guardar as coisas, os utensílios... Ter essa memória fotográfica de todo o ambiente que me cerca. Quando comecei a pensar, no colégio, no que queria fazer, com o que ia trabalhar, eu já me expressava por meio da fotografia, já estudava fotografia, já tinha uma câmera, já fotografava o tempo todo. Eu sabia exatamente onde queria estar e enxergava o mundo por meio da fotografia.

Minha primeira graduação foi em cinema. Depois de certo tempo de graduação, você começa a ter acesso a outras coisas, a outros processos, e eu comecei a entender que a fotografia podia ser um pouco mais do que construção de memória. Passei a ver a fotografia como uma ferramenta de comunicação. Muitas coisas que eu não conseguia verbalizar, falar, a fotografia conseguia, ela servia como esse canal, como esse meio de comunicação.

Comecei então a perceber que queria ir além, queria não só guardar memórias, mas também comunicar, queria gritar, queria que meus sentimentos sobre aquilo que vejo do mundo e no mundo pudessem ser expostos. Nesse momento, queria ampliar vozes.

Justamente quando estava na faculdade de cinema, comecei a pensar na possibilidade de trabalhar em jornal. Na época, nem sabia muito bem o que era fotojornalismo. Quando fiz minha segunda graduação, que foi em comunicação social (em rádio, TV e internet), entrei em um jornal como estagiária. Eu me encontrei nesse espaço. Percebi que ali teria a projeção de Brenda no mundo. Conseguia me ver, enxergar os outros e perceber como as pessoas enxergavam através dos meus olhos. Foi muito importante para mim perceber que podia ampliar espaços. Quando estava com raiva, fotografava sentindo esse sentimento de raiva. Ele era exposto. Eu indagava e emocionava.

Comecei como estagiária em Diário de Pernambuco, o primeiro jornal em que trabalhei. Foi um presente ter trabalhado especialmente nesse jornal, porque foi a primeira redação que entrei na qual, na época, havia uma mulher editora e outra subeditora.

Então, sem ser uma coisa muito direcionada, estava ali com fotógrafos que eu tinha estudado na faculdade, e as portas foram se abrindo. Fui percebendo que, sim, posso ocupar esse espaço, estar nele, me sentir bem nele, contribuir.

É muito louco notar que, ao longo dessa minha construção, a memória nunca deixou de ser importante, ela apenas virou comunicação. É por meio das fotos que a gente fez no passado que a gente consegue compartilhar e vivenciar a história. A fotografia é memória e construção histórica. Então estava simplesmente pegando meu interesse pela memória, que sempre foi muito forte, e ocupando espaços para tentar levar o fotojornalismo para outro lugar.

Depois do jornal Diário de Pernambuco, passei por outra redação, um portal online. Aí teve outra transformação, porque um meio de comunicação online é outra linguagem e envolve outras narrativas. Nessa época, começou a ser muito forte nesses meios a presença do vídeo como mais um recurso de comunicação. Depois do portal LeiaJá, fui para a Folha de Pernambuco, outro jornal impresso, mas que tinha um canal de vídeo.

Em resumo, foi como uma escadinha. O primeiro jornal foi um impresso, o mais antigo da América Latina, o Diário do Pernambuco, que possibilitou me reconhecer como fotógrafa, me permitiu ocupar espaços e me fez perceber onde a fotografia podia se apresentar. Depois, no meio de comunicação online, tive de incorporar outra velocidade, o que implicava o uso do vídeo e de outras formas de narrativa. E, em seguida, mudei para a Folha de Pernambuco, um jornal impresso que tem uma plataforma online.

Por fim, depois da Folha de Pernambuco, fui trabalhar no Jornal do Comércio, um sistema de comunicação que inclui televisão, portal online e jornal impresso.

Gosto muito de falar sobre essa transição, essa escada, porque penso que a Brenda de hoje, a Brenda Alcântara, enquanto produtora de conteúdo e produtora de imagem, se formou por meio de todas essas escolas. Então a forma como me comunico hoje no mundo é por meio da imagem, seja ela imagem fotográfica ou imagem em movimento, o vídeo.

Então, saindo um pouquinho dessa apresentação de como foi a construção da Brenda profissional, para mim, foi muito importante ter feito uma faculdade ligada à área. Na faculdade, você encontra referências daquilo que pode fazer e de onde pode chegar. Talvez, se não tivesse tido o primeiro encontro com o cinema e logo depois com a comunicação social, não teria a “bagagem”. Acredito plenamente que a fotografia é feita de “bagagens”. Tudo aquilo que vivencio e experimento e que uso como referência vai dizendo quem é Brenda. A forma como enxergo o mundo se baseia naquilo que me alimenta.

Muita gente pergunta: como é que faz pra fotografar de tal jeito? Como é que faz pra fazer cobertura de tal evento? Como é que faz pra fotografar o carnaval? Eu digo que aprender a parte técnica da fotografia – diafragma, velocidade e ISO – é a parte mais simples, porque é um processo matemático. Você lida com números, é uma fórmula, os modelos se repetem um pouco. Mas a construção do olhar não tem fim.

Então, tudo aquilo que vivencio, experimento e troco – o que eu comunico, como eu comunico, como me enxergo dentro de tudo isso – faz parte da minha construção como fotógrafa.

 

Como foi seu percurso até se tornar uma fotojornalista com contribuições para sites de notícia como Uol e Intercept? Você também faz bastante publicidade, né? Como é transitar do fotojornalismo para a publicidade?


Você vai agregando conhecimento, agregando network, se conectando com as pessoas. Aos poucos, fui ampliando a rede. Nunca fiz parte de uma única equipe, né?

A internet também foi um fator muito importante. Uso o Instagram como portfólio. Isso é também um dilema para mim, porque não quero ficar presa a uma única plataforma. O Instagram é muito útil e facilita bastante a comunicação com um fotógrafo ou um editor do Rio de Janeiro ou de São Paulo, por exemplo, mas limita a profundidade do meu trabalho. Então, ele não deve ser a única forma de apresentar um portfólio, mas é um canal que funciona muito bem. Minha foto que ganhou capa do jornal Folha de S. Paulo foi escolhida pelo editor no mesmo dia em que ela foi feita e postada no Instagram.

Então, por ter transitado por tantos jornais e por ter ganhado prêmios regionais e nacionais ao longo da minha trajetória em veículos de comunicação, que durou nove anos, acabei ampliando a rede. Com essa ampliação, comecei a ser chamada para fazer trabalhos para outros sistemas, o que para mim foi ótimo, porque são outros meios que possibilitam o desenvolvimento de narrativas. Comecei a ser chamada para fazer parte de agências internacionais, como a Reuters e a AFP, e agências locais também. Comecei a ser chamada para fazer matérias especiais para o Intercept e para o Tab Uol. O Tab Uol foi um super parceiro. A gente conseguiu fazer muitas colaborações, e foi muito importante isso.

A pandemia, de certa maneira, possibilitou que eu reforçasse a bandeira de que sou fotógrafa, nordestina, mulher e recifense. Ela me fez perceber que, pensando no âmbito nacional da fotografia, eu estava representando um dos olhares acerca das questões envolvendo a pandemia, particularmente, do que estava acontecendo em Pernambuco. Levei para essas agências um recorte da fotografia nordestina.

Ter feito trabalhos para a ONU, a UNICEF e o PNUD também foi muito importante nessa trajetória de expansão.

Acredito muito que tudo aquilo que a gente vai construindo, a gente vai agregando, porque são narrativas distintas. Cada veículo de comunicação tem uma narrativa e um público específicos. Não existe uma definição geral da fotografia e do fotojornalismo que todo mundo tem de seguir. Os fotógrafos são seres únicos, com olhares únicos, que se articulam a determinado sistema para produzir imagens.

É muito bom transitar entre esses espaços e entender como os editores dos diferentes veículos trabalham com o material que produzo. E são espaços de construção mesmo. Por isso sempre repito muito: eu sou minha “bagagem”.

Só um adendo em relação a isso. Sou filha de um pai baiano e uma mãe paraibana. Por toda a minha criação, percorri muitas estradas. Nasci em Recife, Pernambuco, mas sou filha de pais de dois estados distintos aqui do Nordeste. Então acho que o fato de transitar o tempo todo, desde muito jovem, por esses espaços, por esses estados, me fez muito ter a necessidade e a vontade de ampliar horizontes. Eu vou para saber quem sou, mas volto para ressignificar o que sou. Então é sempre essa história, sempre esse caminho de trocas, mas também de pertencimento.

Sobre transitar entre o fotojornalismo e a publicidade... Todos os trabalhos publicitários que fiz foram dentro da linguagem documental. Meu olhar é documental. Documental costuma ter o seguinte sentido: quero intervir o mínimo naquilo que está acontecendo ao meu redor. É impossível falar de uma intervenção nula. O fato de eu estar ali como mulher branca, com muitos equipamentos e com meus privilégios, já é uma intervenção natural. Então, quando a gente fala de um mínimo de intervenção, a gente quer dizer, por exemplo, que a luz composta será a luz natural, que o espaço será aquele disponível e que as pessoas não vão ser dirigidas. Não vou pedir para as pessoas se movimentarem para lá ou para cá, não faço isso. Então, meus trabalhos publicitários tinham muito uma narrativa documental, e é interessante perceber essa mescla.

A gente trabalha hoje em dia dentro de um campo em que tudo foi virando um pouco de tudo. E é importante perceber que tudo tem um pouco de tudo, mas há sempre um meio que se destaca. Veja a coisa das relações transmídia. O fotojornalismo teve que se modificar e passou a ser um meio de comunicação do instante. Então a gente também trabalha hoje em dia com o celular. Mas muitas vezes me perguntam assim: se você estivesse presenciando um fato jornalístico importante, um grande momento, e precisasse escolher uma ferramenta, qual você escolheria? Eu sempre vou escolher a fotografia, sempre vai ser esse meu lugar, minha raiz.

Em 2023, fiz um trabalho em que uma empresa escolheu fotógrafos de lugares distintos do Brasil e pediu para que a gente fizesse uma produção envolvendo um tempero regional. Por mais que tivesse toda uma carga publicitária – era um trabalho publicitário, foi uma fotografia voltada para a publicidade –, as fotos foram pensadas para serem o mais natural possível. Tinha intervenções de luz, de composição, mas a minha essência fotográfica é muito do natural, da espontaneidade. Então o máximo que eu puder ter de minha essência, do meu olhar, vai ser o caminho que vou seguir. Não fiz muitos trabalhos publicitários, mas todos tiveram essa linguagem.

Gosto de pensar que o fotojornalismo é minha escola, minha base. Por mais que transite por outros espaços, tenho sempre muito claro meu propósito e meu olhar.

 

Como você enxerga a fotografia hoje? É um trabalho como qualquer outro ou um meio de expressão? Em outras palavras, você se considera uma artesã, com um bom domínio técnico para a produção de imagens eficientes que atendam aos interesses de clientes, ou uma artista, que busca usar a fotografia como um meio de expressão?


Acredito que toda forma de comunicação está totalmente entrelaçada com as transformações da sociedade. Então não tem como colocar a fotografia em um espaço em que ela não seja afetada. Acho que a fotografia hoje é um meio de expressão relacionado às narrativas transmídias. A gente não só fotografa, mas também pensa e enxerga tudo ao nosso redor por meio da imagem.

Não enxergo o aspecto artesanal e artístico da fotografia como duas unidades separadas. Acho que elas se interligam, acho que uma não anula a outra. Não acho, acredito. De fato, é isso, é assim. Eu sou essa dualidade, de fato. Sou técnica – tenho consciência do meu equipamento e da fotografia que estou produzindo e que quero produzir – e sou também uma artista – construo minha forma de enxergar o mundo em um espaço que possibilita o exercício da criatividade. Então, essas duas unidades se interligam o tempo todo e se somam. Não existe o “Ah, precisa ser mais técnico e menos artista ou mais artista e menos técnico”. Acredito, inclusive, que quanto maior for o conhecimento técnico, maior será a possibilidade de experimentação artística. Um maior domínio da ferramenta de produção de imagem, foto ou vídeo, possibilita uma maior liberdade de criação.

 

Acha que o fotojornalismo pode ser considerado um campo de expressão artística?


Acredito que pode ser considerado, sim. O fotojornalismo não é apenas um registro daquilo que está pronto diante do fotógrafo. Não é uma expressão apenas do factual. É uma construção muito complexa e apresenta diversas camadas. No fotojornalismo, posso ter consciência social e me comunicar como artista.

Eu não faço parte daquilo que está acontecendo, mas estou presente, tenho consciência daquilo que está acontecendo, enxergo, por meio do meu olhar fotográfico e com minha “bagagem”, aquilo que está acontecendo e posso transformar o que está acontecendo em arte. Então acho que sim, acredito totalmente que o fotojornalismo é uma expressão artística, uma expressão completa que tem diversas ramificações e diversas vertentes.

Durante certo tempo se considerou que o fotojornalista era aquele que apenas apontava a câmera para o factual e apertava o botão. Porém, ao clicar, as escolhas dependem da “bagagem”, da construção do olhar, o que possibilita diversas narrativas, e a lente, a fotometria e o ângulo proporcionam linguagens distintas. Assim, ao ser colocada no espaço do factual, posso abordá-lo de diversas formas, com diversos ângulos, me distanciando do factual e construindo narrativas.

 

Você registrou trabalhadores da área da saúde que estavam lidando com a pandemia de covid-19. As imagens que produziu revelam a tensão e o drama vividos por essas pessoas, mas também momentos de delicadeza, solidariedade e empatia. Como foi trabalhar registrando trabalhadores que estavam o tempo todo correndo o risco de contrair a doença, que naquela época ainda se mostrava extremamente ameaçadora, ao mesmo tempo que você também corria esse risco?


Quando a Covid-19 começou, estava na Espanha, meio a trabalho, meio de férias. Muito rapidamente a situação se transformou, e tive que voltar correndo para o Brasil para não ficar reclusa lá. A gente não tinha nenhum parâmetro do que estava acontecendo.

Quando cheguei ao Recife, tinha apenas um registro de caso confirmado. E aí a gente teve que ficar uns 15 dias reclusos em casa, por determinação da Secretaria de Saúde, porque a gente tinha vindo num avião com um caso confirmado. Não contraí Covid.

Aí começou a ter o lockdown, e fui convidada por alguns veículos de comunicação a produzir conteúdo sobre a Covid. Topar ou não essa cobertura foi uma das decisões mais difíceis que já tomei, enquanto profissional, enquanto fotojornalista. Por mais que, no jornal, já tivesse passado por diversas situações de vulnerabilidade, de exposição e de risco – cobrir protestos é um risco, cobrir queimadas é um risco, mas são riscos visíveis –, com a Covid não dava para saber qual era o limite. A Covid não é visível, então não conseguia saber até onde podia ir. Pela primeira vez, não senti que a câmera podia me dar uma blindagem de segurança. Então foi muito difícil escolher cobrir a Covid-19. Não só cobri os profissionais de saúde, mas também cobri todo o processo da Covid-19 pelo Estado, principalmente aqui em Recife. Decidi principalmente pelo propósito de construir memória. Não conseguiria ficar distante de um dos principais eventos de saúde humanitária que foi a pandemia.

Foi um grande dilema para mim, um dilema ético, de saúde e profissional. Parecia que toda a minha formação havia sido para me preparar para enfrentar esse dilema.

Então escolhi, sim, cobrir a Covid-19, fiz todo o protocolo de distanciamento em relação aos meus pais, abracei eles, deixei claro que durante um tempo não ia ter contato com ninguém. Foi uma cobertura extremamente difícil de ser feita, seis meses visitando hospitais, cemitérios, vendo abertura de covas, vendo sepultamentos, lidando com os profissionais de saúde.

Foram trabalhos feitos tanto em fotografia quanto em vídeo. A gente comunicou para diversos lugares, eram pouquíssimos fotógrafos que estavam conseguindo ter acesso a esses espaços ou podendo ter acesso a esses espaços. Todo dia era um dia novo, todo dia era um novo medo, todo dia era um novo contrato comigo mesma, um novo acordo que fazia comigo mesma com relação a meu limite. Dizia para mim mesma: “Calma, Brenda, até onde você pode ir, até onde você aguenta, até onde lhe cabe?” Acho que, principalmente no fotojornalismo, a gente está o tempo todo avaliando até onde pode ir, até onde é ego, até onde é propósito.

Uma das coisas que mais me sensibilizou em relação a Covid foi perceber o senso de humanidade naquilo tudo que estava acontecendo. Os médicos são seres humanos, o funcionário que está ali abrindo covas é um ser humano, todo mundo está presente e ninguém está imune a nada. Acima de qualquer processo triste existe uma delicadeza, um orgulho de ter salvo alguém, um orgulho de ter a felicidade, ainda que mínima, de dar uma boa notícia a uma família.

A cobertura da Covid não foi só ampliar as escalas absurdas do trágico, mas também mostrar como estávamos vivenciando a pandemia emocionalmente. Para mim, hoje, depois de passar por tudo isso, posso afirmar que foi muito importante ter feito essa cobertura. Foi muito forte estar ali acompanhando os profissionais de saúde, entrando nos hospitais. Passava um tempo no hospital, depois fazia outras matérias, algumas matérias especiais em que conseguia participar da vida de determinada família. Depois voltava para o hospital e tinha novos encontros.

Tinha aquela alegria de “Que bom que você está aqui”, “Que bom que você voltou”, “Que bom que você está viva”. A gente celebrava a vida, naquele momento tão frágil e tão vulnerável, enquanto a tinha.

Esse ciclo se encerrou de forma muito bonita quando rolou o especial do melhor do fotojornalismo no Brasil, com trabalhos representando toda essa cobertura dos profissionais. Foi muito bom fazer parte disso com uma foto de uma médica, mulher e nordestina, que estava num plantão de 48 horas e que tinha sido uma das primeiras a descobrir as manchas nos raios X que podiam salvar pessoas antes dos sintomas clínicos visíveis começarem a aparecer.

Depois disso, consegui concluir “Valeu, o propósito foi esse, fiz da melhor forma e com muito respeito”.

 

Em 2021, ainda durante a pandemia, você registrou mulheres recifenses que fazem parte da equipe da cooperativa Palha de Arroz. Você diz na legenda da imagem: “Ressignificando o plástico que descartamos diariamente, as catadoras têm conquistado a independência financeira tão necessária à emancipação feminina.” Poderia falar um pouco mais sobre essa relação do trabalho com a emancipação?


Só para contextualizar um pouco, a cooperativa Palha de Arroz é formada exclusivamente por mulheres e tem dois aspectos inovadores: ela não é só uma cooperativa de reciclagem, é também um espaço para a transformação de resíduos em objetos, como vasos e bolsas, e o processo de transformação é feito tanto manualmente quanto por meio de máquinas; todos os cargos da cooperativa são ocupados por mulheres.

Nesse projeto, procurei mostrar que a independência da mulher é atingida por meio da liberdade financeira. Diversas pesquisas apontam para isso. A partir do momento que a mulher se torna responsável por seu trabalho e protagonista das suas escolhas, ela adquire consciência do que pode realizar com autonomia, dos espaços que pode ocupar, dos seus limites e dos seus sonhos. Acredito que toda política pública, direta ou indireta, que valoriza a liberdade financeira da mulher colabora para sua independência e, portanto, contribui para que haja menos violência doméstica. A gente sabe que existe uma estrutura naturalizada, fruto de uma sociedade machista, em que se espera que a mulher fique em casa e o homem saia para trabalhar. Quando o homem é fonte da renda principal – muitas vezes, da única renda da casa –, a mulher se vê ali numa relação de dependência não só financeira, mas também emocional ou psicológica. Então, sempre que a mulher tem a independência financeira, ela tem maior chance de sair de situações nas quais ela não merece estar. O projeto Palha de Arroz contribui, portanto, para a sustentabilidade e a igualdade de gênero.

 

As imagens que produziu revelam certa leveza dessas mulheres, um entusiasmo, parece, por estarem sendo fotografadas, entusiasmo não afetado pelo esgotamento do trabalho, que deve ser duro fisicamente. Como foi o desenvolvimento desse projeto? Algum jornal encomendou essa pauta ou você se dedicou a ela por conta própria? Desenvolve projetos sem que haja encomenda de jornais, revistas etc.?


Quando desenvolvi esse projeto, em 2021, estava trabalhando como fotógrafa da primeira vice-prefeita de Recife. Procurei aproveitar esse espaço que estava ocupando para apresentar pautas de gênero e pautas de cunho social. Foi justamente aí que a gente desenvolveu o trabalho de entender a dinâmica das mulheres do Palha de Arroz.

Ao longo de toda a minha carreira como fotógrafa, sempre procurei pensar a fotografia para além daquilo que queria produzir. Meus trabalhos não são sobre Brenda, são sobre o outro estar confortável, o outro estar seguro, o outro estar se sentindo bem quando se vê representado. Busquei isso durante toda a minha trajetória, independentemente da pauta. Ao fazer pautas de direitos humanos que envolviam espaços de vulnerabilidade, sempre procurei não exacerbar ou romantizar a vulnerabilidade.

O trabalho das mulheres do Palha de Arroz também não pode ser romantizado, porque é um trabalho duro. A gente está falando de resíduos, de um trabalho muito braçal, apesar do uso de máquinas. Mas o ambiente da cooperativa é seguro e acolhedor. Enquanto fotógrafa quero que elas se sintam assim também, seguras e acolhidas. Inicialmente, cheguei lá só para conversar com elas, mas acabei passando o dia inteiro. Fiz também um minidocumentário. A gente foi estreitando os laços, criando um espaço de confiança, aí montei umas luzes e disse “Vocês estão em um estúdio”. Foi engraçado, depois que comecei a montar as luzes, ouvir elas dizerem “Que incrível, vou ser famosa, vou ser fotografada que nem as estrelas”. Eu acho mágico esse aspecto da fotografia. Do mesmo jeito que monto estúdio para um artista de TV, monto para as trabalhadoras do Palha de Arroz, do mesmo jeito, da mesma forma. Acho que esse entusiasmo vem de um sentimento de pertencimento, de acolhimento e de segurança que tento estabelecer. O principal direcionamento para o ensaio foi: sintam-se livres e felizes. Estou aqui fotografando vocês da forma como quiserem. Foi muito legal, porque cada uma chegava e fazia a pose que queria, se portava como queria. Tinha uma que estava bem envergonhada, que não queria ser fotografada de jeito nenhum. Falei: “Tudo bem, é no seu tempo, não estou aqui para ultrapassar seus limites”. E aí bem no final ela falou: “Então, quero também”. E ela foi vendo o processo... porque a fotografia é um processo de construção, e essa construção não é só minha, é coletiva. Ela depende do meu processo individual, claro, mas também de como me entrego ao meio e de como o meio me responde. Tudo ficou naturalizado, dinâmico e sensível, e, por isso, consegui expressar leveza nas imagens.

 

Seu trabalho é bastante diversificado, indo do documental, dando piscadelas para a fotografia de rua, passando pelo fotojornalismo, chegando ao retrato. Para você, essas passagens são naturais ou exigem pausas, reflexões, testes e pesquisa?


Acredito muito na ideia de que já nasci com um olhar curioso para tudo o que me cerca. Estou presente em tudo aquilo que enxergo e vivencio.

Minha primeira e principal escola é o fotojornalismo, que me abriu e me abre espaços em diversos campos. Enquanto fotojornalista, fiz esportes, retrato, gastronomia, social, fotografia de rua, hard news e muitas outras coisas. Aos poucos, fui me formando enquanto fotógrafa e entendendo as narrativas nas quais me encaixava melhor. Acho bonito se encontrar nesse universo amplo, é isso que o fotojornalismo apresenta. Hoje em dia, minha fotografia é principalmente documental com pinceladas de muitas outras coisas, mas a base dela é formada por gente. Para mim, são as pessoas que comunicam, são elas que me fazem sentir, são elas que me fazem ter vontade de enxergar para além das histórias que querem me contar. Quando coloco as pessoas no centro da minha narrativa, invoco o documental, o retrato e o fotojornalismo também, mas as pessoas são sempre o centro. Não gosto de pensar de forma sistemática, separando os campos.

Na verdade, estou o tempo todo fotografando. Quando estou na rua, caminhando, sem a câmera ou o celular, e vejo alguma cena interessante, fotografo com os olhos, porque tudo o que me cerca me coloca nesse estado.

 

Se olharmos para a história da fotografia brasileira, observamos que os grandes expoentes são, em sua maioria, homens brancos. Apesar de atualmente estar havendo um movimento de valorização de fotógrafos de outros gêneros e outras etnias, ainda é uma valorização muito incipiente. A Gabriela Biló, por exemplo, em uma entrevista no final de 2020 para o portal Femme News, diz o seguinte: “O dia a dia pesa, a gente repassa na cabeça milhares de vezes as situações tentando se convencer de que não foi machismo, que faz parte do jogo, que somos vistas como iguais, mas, ao fim, percebemos que não, o machismo é sempre presente”. Concorda com ela? Você tem de lidar cotidianamente com o machismo em seus trabalhos?


Lidamos com o machismo o tempo todo. O fotojornalismo, um campo majoritariamente masculino, é machista e classista. Em todos os jornais em que trabalhei — foram quatro grandes grupos de comunicação em Recife —, sempre observei uma presença muito limitada de mulheres. A minha participação representava menos de 10% da equipe.

Sinto que tive sorte no início da carreira, pois, no meu primeiro emprego, muito jovem, minhas duas editoras eram mulheres. Essas chefas mostraram empatia e acolhimento, essenciais para mim como fotógrafa, mulher e novata em um jornal consolidado, o mais antigo da América Latina. Estava num ambiente estruturado e normatizado de acordo com padrões machistas. No começo, relativizava muitos desses aspectos, não compreendia totalmente e só queria fotografar. No entanto, percebia que, antes mesmo de pegar a câmera, precisava vencer várias barreiras.

O mais difícil para uma mulher fotógrafa é perceber que, antes de ir para a rua, é necessário provar que é capaz, que sabe o que está fazendo. É preciso lidar com a própria segurança enquanto mulher e com a visão que os outros têm de você, te enxergando como o sexo sensível e frágil, como se sensibilidade e fragilidade fossem sinônimos — o que não é verdade.

Esse é um dos pontos mais naturalizados e ainda muito presentes no meio. Com o advento das redes sociais e a expansão da fotografia digital e da comunicação pela internet, o fotojornalismo se desdobrou em novos formatos, mas o ambiente continua machista e classista, e isso reflete no próprio investimento inicial que um fotógrafo precisa fazer para iniciar a carreira. Com o tempo, desenvolvi maturidade e comecei a desafiar conscientemente essas estruturas.

A primeira ruptura que impus foi a de quebrar os estereótipos direcionados a mim como fotógrafa mulher. Comecei a recusar pautas atribuídas a mim por conta do meu gênero, como as de educação ou aquelas envolvendo crianças — temas com os quais diziam que teria mais “tato” ou “jeito”. Decidi, então, ocupar espaços onde as mulheres eram menos representadas: comecei a cobrir pautas de direitos humanos, fotografar treinos militares, homicídios e futebol. Esse foi meu modo de afirmar que também podia estar ali, de mostrar que era possível ocupar esses espaços, por mais difícil que fosse.

Consolidando minha narrativa e meu espaço, fui tentando ser um ponto de apoio para outras mulheres que queriam entrar nesse meio. Sempre incentivei e dialoguei com quem chegava, as incentivando a cobrir pautas como futebol, por exemplo, e criando uma rede de apoio. Dentro dessa estrutura rígida, esse foi meu modo de resistir e ajudar outras mulheres a também encontrarem seu lugar.

Ao longo da trajetória, às vezes parece que estamos vencendo a batalha, que encontramos o nosso espaço e conquistamos nosso reconhecimento. Mas, de repente, surge uma nova onda de desafios, e precisamos ressignificar tudo de novo, enfrentar novos obstáculos e recarregar nossa energia. Infelizmente, a fotografia, especialmente o fotojornalismo, ainda é um campo muito masculinizado.

Para mim, a resposta foi adotar uma postura firme: esse é o meu espaço, é aqui que quero estar e construir para que outras mulheres também possam estar. Ainda temos um longo caminho pela frente, mas acredito que esse é o processo de solidificação que precisamos para um dia tornar o ambiente mais justo e inclusivo.

 

Seu trabalho tem muita identificação com a cidade de Recife. Sente que a cidade onde vive influencia sua maneira de produzir imagens?  


Recife é uma cidade que me atravessa. Não tem como passar por Recife sem se sentir tocada por ela. A cidade cria em nós uma relação de contrapontos. Amo Recife, sou apaixonada por ela e, em muitos aspectos, me sinto muito feliz nessa cidade. Mas também sinto frustrações. Olho pela janela e vejo os rios que atravessam a cidade e os portos do outro lado. Recife tem essa construção que identifico com o meu próprio processo de travessia, com minha construção como pessoa. Atravesso cidades, muros, espaços. Recife é um lugar que me acolhe, me atravessa e me coloca em um constante estado de reflexão, de sentir a cidade, de vivê-la.

Além disso, escolhi morar no centro da cidade justamente para sentir suas urgências, seu ritmo pulsante e vivo, que me coloca em um estado de constante observação e presença enquanto moradora. Não me isolo nesse espaço, não fico distante, apenas observando. Vivo a cidade, moro nela e observo o que a cidade me oferece. Assim, Recife é, sim, uma grande referência no meu trabalho, mas o Nordeste como um todo também tem uma influência profunda. Ele está presente em tudo o que faço, especialmente em termos de cor, temperatura e textura das imagens. O Nordeste traz uma paleta visceral, quente e árida, que exalta nossas temperaturas ao extremo e intensifica a minha cor de maneira potente.

Esse universo de cores me oferece um céu azul que não encontro em outro lugar, tons de verde, rosa e amarelo que são nossos e uma fotometria e contrastes que só consigo ter aqui. Então, mais do que Recife, o que mais me encanta e me ressignifica enquanto fotógrafa é ser do Nordeste, é carregar comigo essa cor. Dessa forma, sinto-me atravessada pela cidade onde moro. A fotografia, nesse contexto, está intrinsecamente ligada ao meio em que vivemos. Sempre levarei Recife e o Nordeste comigo, mas serei sempre influenciada pelo ambiente em que estiver.

Assim, minha fotografia se desenvolve nessa construção coletiva — uma interação entre quem eu sou, a “bagagem” que carrego e o ambiente ao meu redor. Tudo isso de forma muito orgânica, mas sempre respeitando o espaço em que me encontro.

Para finalizar, foi muito bom responder a essas perguntas. Como fotógrafa documentarista, com uma linha narrativa voltada aos direitos humanos e com um forte elemento narrativo presente tanto na fotografia quanto no trabalho em vídeo, esses aspectos definem quem sou enquanto fotógrafa, videomaker e diretora de fotografia. Ter esse momento de reflexão, especialmente sobre as trabalhadoras da cooperativa na construção do ensaio, foi muito significativo.

Tudo isso converge para aquilo que acredito ser a linguagem fotográfica. Estou sempre aberta a novas tecnologias, novas narrativas e novas possibilidades, mas sem perder de vista a conexão com o meio em que atuo e as bandeiras que defendo e considero importantes. Acredito que a fotografia seja uma forma de expandir a possibilidade de as pessoas serem ouvidas, de nos inserirmos e estarmos presentes em um contexto. E, acima de tudo, é uma ferramenta para questionar, refletir e provocar, tanto o outro quanto a nós mesmos.

 
 
 

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